Ninguém Me Verá Chorar [Cristina Rivera Garza] | Livro Lab
Últimos vídeos    |  Se inscreva no canal
Resenha: Meu Ano de Descanso e Relaxamento  Leituras de 2022  Resenha: Belo Mundo, Onde Você Está
Semana do Consumidor Amazon | Livros

Ninguém Me Verá Chorar [Cristina Rivera Garza]

Cristina Rivera Garza 6 de maio de 2011 Aline T.K.M. 4 comentários

Joaquín Buitrago, ex-fotógrafo de prostitutas e retratista no sanatório de La Castañeda nos anos 1920, acredita ter identificado numa das pacientes, Matilda Burgos, uma prostituta que ele encontrara anos atrás num dos prostíbulos da capital mexicana, La Modernidad.
Sua obsessão em confirmar a identidade de Matilda faz com que ele tenha acesso às fichas médicas dela. Joaquín, então, descobre as origens da paciente, assim como fatos e experiências determinantes na vida dela. Quanto mais o fotógrafo vai conhecendo a vida de Matilda, mais se convence que eles devem tentar viver juntos.
Estamos num México convulsionado por revoluções, no qual o velho e o novo lutam por seu espaço, e no qual a injustiça brilha sobre quem quer mudar o mundo para melhor. Este entorno é o cenário no qual os personagens desgraçados, perfeitamente perfilados pela autora, vêem evaporar seus sonhos, um atrás do outro, numa tragédia íntima que molda a realidade cultural, não somente do México, mas de grande parte da América Latina.


Quando achei esse livro, novinho, em um sebo, fui atraída primeiramente pela capa (que considero bela e singular). Nunca havia ouvido falar nele e tampouco conhecia a autora, mexicana. Mas ao ler a sinopse foi inevitável não levá-lo comigo! Por motivos diversos, mas principalmente por falar sobre o México unindo ficção e realidade, história. Não me arrependi, e considero este livro um pequeno tesouro que jamais sairá da minha prateleira!
Devo começar dizendo que Ninguém Me Verá Chorar não é um livro de leitura muito fácil. Não há tantos diálogos e os capítulos são bastante extensos. Apesar disso, me agradou bastante a linguagem, a forma como a autora nos faz descobrir as etapas da vida de Matilda Burgos. No livro, passado e presente intercalam-se o tempo todo, e algumas vezes fica difícil se situar durante a leitura. Mas isso definitivamente não chega a ser um ponto negativo, uma vez que está ligado intrinsecamente ao jeito como a história nos é mostrada, e não consigo imaginar o livro escrito de outra forma senão essa.

Cada personagem possui personalidade e desenvolvimento excepcionais. É difícil não se envolver. Merecem destaque as fichas médicas ao longo da história (mais precisamente no capítulo 3) que nos contam um pouco de alguns internos do La Castañeda, inclusive com passagens em primeira pessoa, relatos.

Outro ponto que merece ser mencionado é a forma como se mesclam as histórias individuais dos personagens e o momento histórico do México de então, os conflitos políticos, as perseguições. Somos levados para dentro do livro e quase podemos ver diante de nós o que nos é descrito com maestria pela autora. Apesar da história da protagonista ser fictícia – segundo a autora, uma reconstrução livre, fruto da imaginação – a obra é baseada em relatórios clínicos, documentos oficiais, cartas de internos do Manicômio Geral (conhecido como La Castañeda). A autora explica nas notas finais do livro: “Os dados históricos sobre o mundo das ruas, do manicômio e outras instituições de controle social no México porfiriano e na alvorada da pós-revolução provêm da minha tese de doutorado em história latino-americana.”

Achei particularmente interessante a relação entre Joaquín Buitrago e o médico Eduardo Oligochea (que foi cúmplice ao fazer com que Joaquín tivesse acesso à ficha médica de Matilda). Joaquín, durante todo o tempo, sabia que uma relação de amizade seria necessária para chegar ao seu objetivo; Eduardo, hermético e sistemático, se resguardava tão bem quanto ouvia tudo com paciência. Acho este trecho abaixo um bom exemplo para ilustrar tudo isso:

O médico residente não o interrompe. “Sou todo ouvidos.” Dentro dele, alinhadas numa ordem rigorosa, suas próprias emoções estão a salvo. Mudas. Não quer despertá-las. Não tem interesse em compartilhá-las. Se algo aprender nos manuais de anatomia, com as camas imundas dos hospitais, diante do pus e da peçonha da morte, é guardar sob a pele, bem escondido, o pronome eu. Os encontros com Joaquín lhe agradam porque podem transcorrer na terceira pessoa.

Esse outro trecho abaixo, acho-o ótimo para termos uma ideia do La Castañeda. 
O manicômio tem vinte e cinto blocos espalhados em 141.662 metros quadrados. Dentro, protegidos por altos muros e grades de ferro, os loucos e as castanheiras projetam suas sombras sobre lugares afastados do tempo. O manicômio é uma cidade de brinquedo. Tem guaritas, ruas, enfermarias, cárceres, moradias. Há tumulto, rixas, tráfico de cigarros e narcóticos, tentativas de suicídio. Há oficinas onde os homens fabricam esquifes e tapetes sem ferir as mãos com pregos e sem cortar as veias. Não recebem salário. As mulheres lavam os uniformes azuis até deixá-los desbotados e, nas oficinas de costura, fazem mantas e ponchos, remendam camisas e lençóis puídos. Há poetas escrevendo cartas a Deus; mecânicos, farmacêuticos, policiais, ladrões, anarquistas que renunciaram à violência. Acontecem histórias de amor. Melancolia calada. Classes sociais. Desespero que se expressa com gritos. A dor não acaba nunca.

Matilda Burgos é um enigma a ser decifrado ao longo do livro. Incompreensível em meio ao labirinto de sua própria vida, mas ao mesmo tempo de uma vulnerabilidade não óbvia. Chego até mesmo a pensar (mesmo não me sentindo no direito de tirar tais conclusões), que se Matilda tivesse aprendido a enfrentar e compartilhar suas perdas, sua dor, seu caminho teria sido outro, talvez nunca tivesse ido parar em um manicômio.

Colecionou suas lembranças e, uma a uma, as guardou em um lugar oculto. Depois, fechou a porta e colocou-lhe o cadeado do silêncio. “Ninguém me verá chorar. Nunca.” Mais que a própria dor, Matilda temia a compaixão alheia. Desde muito antes e sem saber havia decidido viver todas as suas perdas sozinha, sem a intromissão de ninguém, às vezes nem de si mesma.

Nem preciso dizer que adorei o livro, inclusive fiquei bastante interessada em ler outras obras de Cristina Rivera Garza. E com certeza o farei!

Por fim, durante toda a leitura, fui surpreendida e deleitei-me com belas frases, cheias de significados não escancarados, mas que fazem pensar e concordar. Deixo algumas dessas frases aqui:

Nos edifícios da linguagem sempre há corredores sem luz, escadas imprevistas, sótãos ocultos atrás das portas fechadas, cujas chaves se perdem nos bolsos furados do único dono, o soberano rei dos significados.


Há certas conversas que só podem se realizar em silêncio.


O abraço que antecede o amor, no qual o amor culmina, é tépido como uma brisa, escuro como uma mina. Uma fotografia.

Título: Ninguém Me Verá Chorar
Autor(a): Cristina Rivera Garza
Ano da obra: 1999

Aline T.K.M.
Criou o Livro Lab há 12 anos e se dedicar a este projeto é uma das coisas que mais ama fazer, além de estar em contato com os mais variados tipos de expressões artísticas. Tem paixão por cinema, viajar e conhecer outras culturas. Ah, e ama ler em francês!

 

Você também vai  

4 comentários

  1. Li o livro e adorei, a mensagem que nos passa é fascinante, é bom ver o contexto histórico do México que o livro apresenta... MUITO BOM!

    ResponderExcluir
  2. Olá Aline!

    Retribuindo o comentário e dissipando a sua dúvida, o livro que você se refere é este: Kiss - Por Trás da Máscara. No entanto, infelizmente, está esgotado na editora.

    Um abraço e até a próxima!

    ResponderExcluir
  3. Poxa, não sabia que o livro Kiss - Por Trás da Máscara estava esgotado. Aliás, valeu por me lembrar do título!
    A última vez que o vi foi em um quiosque-livraria em um shopping, isso há mais de um ano atrás.

    ResponderExcluir
  4. eu também não conhecia esse livro, na verdade acho que nunca li nada mexicano, fiquei bem curiosa, gostei das citações.

    ResponderExcluir

Parceiros