Resenha: A noite devorou o mundo, de Pit Agarmen
Literatura francesa 13 de agosto de 2014 Aline T.K.M. 12 comentários
Sob o pseudônimo de Pit Agarmen, Martin Page faz crítica à sociedade contemporânea com uma história de... zumbis.
Após passar a noite numa festa no apartamento de uma amiga, o protagonista-narrador desperta na manhã seguinte completamente sozinho, em meio a marcas de sangue por todos os lados. Não demora a constatar que uma epidemia rapidamente devastou a população, reduzindo-a a zumbis famintos e a cadáveres vítimas da violência e do apetite insaciável desses novos monstros.
Diante de uma Paris praticamente deserta, ele se vê acuado nesse apartamento no bairro do Pigalle, sem poder sair devido à ameaça constante de ser atacado pelos zumbis que rodeiam o prédio e que se arrastam morbidamente pelos bulevares de Montmartre.
De um sarcasmo delicioso e com doses de pessimismo, o texto de Martin Page é facilmente reconhecível aqui. Em primeira pessoa, a narrativa tem vida própria: pondera e conversa com o leitor, ao mesmo tempo em que confere personalidade e realismo únicos ao protagonista solitário desta insólita trama.
Como companhia, apenas a lucidez e o desespero. E as lembranças da vida pré-epidemia. Ali no terceiro andar, de onde pode observar as pás do Moulin Rouge, ele se dá conta de que foi salvo justamente por ser antissocial, isolado dos demais. Se em tempos anteriores, os problemas financeiros e a quase inexistente vida social o colocavam à margem da sociedade, agora, a posição de sobrevivente o transfere para o topo da pirâmide: passou a ser a minoria com poder, diferente de uma maioria morta-viva e faminta. Tal como antes, também agora está fora da norma, distinto dos demais.
A vida pós-epidemia não lhe é completamente estranha; já estava de certa forma acostumado a certas privações por causa das dificuldades econômicas. Quanto aos zumbis, passa a enxergar neles seus inimigos da vida de outrora: os pequenos burgueses, gente com aspirações mesquinhas de dinheiro e poder.
Contudo, não estaria ele agora em posição semelhante à de seus antigos inimigos? De sua varanda, usufrui do relativo poder de uma espingarda para humilhar os zumbis. “Brinca” de aniquilá-los e isso lhe dá prazer. A atual posição de desejado – pela fome voraz dos mortos-vivos – agora lhe é essencial, dando-lhe motivação e sentido para viver nesse novo mundo. Usa os zumbis como uma forma de compensar a privação do contato humano – torna-os, inclusive, leitores-ouvintes de seus escritos.
Se antes já via os seres humanos como monstros, a única diferença é que nesse momento eles se encontram completamente despidos do invólucro chamado civilização. De todas as maneiras, a humanidade sempre esteve fadada à própria destruição, após eras destruindo o próprio habitat.
Pegando carona nas reflexões – muito coerentes – do protagonista, percebemos que foi preciso o afastamento da sociedade e de outros seres humanos para que ele pudesse, por fim, conhecer a real essência humana dentro de si mesmo. Foi a falta das relações sociais o que o fez compreender a que ponto necessitava delas. Afinal, não é preciso mais que outro ser humano para encontrar motivação, reconforto, e um sentido para todas as coisas.
Análise socioantropológica concebida por uma mente em situação jamais imaginada, A noite devorou o mundo escava as profundezas – um tanto obscuras – da humanidade atual, suas motivações e desejos. E nos joga na cara como grupos de não seres humanos podem fazer uma sociedade mais coerente do que esta na qual vivemos hoje.
As descrições são uma delícia à parte: somos tratados sem muita piedade diante da voracidade sanguinária dos zumbis e do regozijo do protagonista em contemplá-la.
http://youtu.be/hnpILIIo9ek
Após passar a noite numa festa no apartamento de uma amiga, o protagonista-narrador desperta na manhã seguinte completamente sozinho, em meio a marcas de sangue por todos os lados. Não demora a constatar que uma epidemia rapidamente devastou a população, reduzindo-a a zumbis famintos e a cadáveres vítimas da violência e do apetite insaciável desses novos monstros.
Diante de uma Paris praticamente deserta, ele se vê acuado nesse apartamento no bairro do Pigalle, sem poder sair devido à ameaça constante de ser atacado pelos zumbis que rodeiam o prédio e que se arrastam morbidamente pelos bulevares de Montmartre.
De um sarcasmo delicioso e com doses de pessimismo, o texto de Martin Page é facilmente reconhecível aqui. Em primeira pessoa, a narrativa tem vida própria: pondera e conversa com o leitor, ao mesmo tempo em que confere personalidade e realismo únicos ao protagonista solitário desta insólita trama.
Como companhia, apenas a lucidez e o desespero. E as lembranças da vida pré-epidemia. Ali no terceiro andar, de onde pode observar as pás do Moulin Rouge, ele se dá conta de que foi salvo justamente por ser antissocial, isolado dos demais. Se em tempos anteriores, os problemas financeiros e a quase inexistente vida social o colocavam à margem da sociedade, agora, a posição de sobrevivente o transfere para o topo da pirâmide: passou a ser a minoria com poder, diferente de uma maioria morta-viva e faminta. Tal como antes, também agora está fora da norma, distinto dos demais.
A vida pós-epidemia não lhe é completamente estranha; já estava de certa forma acostumado a certas privações por causa das dificuldades econômicas. Quanto aos zumbis, passa a enxergar neles seus inimigos da vida de outrora: os pequenos burgueses, gente com aspirações mesquinhas de dinheiro e poder.
Contudo, não estaria ele agora em posição semelhante à de seus antigos inimigos? De sua varanda, usufrui do relativo poder de uma espingarda para humilhar os zumbis. “Brinca” de aniquilá-los e isso lhe dá prazer. A atual posição de desejado – pela fome voraz dos mortos-vivos – agora lhe é essencial, dando-lhe motivação e sentido para viver nesse novo mundo. Usa os zumbis como uma forma de compensar a privação do contato humano – torna-os, inclusive, leitores-ouvintes de seus escritos.
Se antes já via os seres humanos como monstros, a única diferença é que nesse momento eles se encontram completamente despidos do invólucro chamado civilização. De todas as maneiras, a humanidade sempre esteve fadada à própria destruição, após eras destruindo o próprio habitat.
Pegando carona nas reflexões – muito coerentes – do protagonista, percebemos que foi preciso o afastamento da sociedade e de outros seres humanos para que ele pudesse, por fim, conhecer a real essência humana dentro de si mesmo. Foi a falta das relações sociais o que o fez compreender a que ponto necessitava delas. Afinal, não é preciso mais que outro ser humano para encontrar motivação, reconforto, e um sentido para todas as coisas.
Análise socioantropológica concebida por uma mente em situação jamais imaginada, A noite devorou o mundo escava as profundezas – um tanto obscuras – da humanidade atual, suas motivações e desejos. E nos joga na cara como grupos de não seres humanos podem fazer uma sociedade mais coerente do que esta na qual vivemos hoje.
LEIA PORQUE
Através das descobertas e reflexões do protagonista, percebemos ângulos de nós mesmos e do mundo sobre os quais não temos por hábito refletir.As descrições são uma delícia à parte: somos tratados sem muita piedade diante da voracidade sanguinária dos zumbis e do regozijo do protagonista em contemplá-la.
DA EXPERIÊNCIA
Nunca pensei que fosse curtir tanto uma trama envolvendo zumbis! Certamente isso se deve ao fato de que o foco, na realidade, está no comportamento, no pensamento e na observação do narrador-protagonista. Felizmente (ou infelizmente para alguns), aqui não tem aquelas passagens de ação batidas nem aquela mesmice que vemos nos filmes de zumbis – que me fazem relutar tanto em assisti-los.FEZ PENSAR EM
How soon is now?, música que amo do Smiths. Não sei bem por que, mas acho que a atmosfera do livro vai muito bem com essa música.
Onde comprar: Amazon
Título: A noite devorou o mundo
Título original: La nuit a dévoré le monde
Autor(a): Pit Agarmen
Tradução: Carlos Nougué
Editora: Rocco
Edição: 2014
Ano da obra: 2012
Páginas: 206
Aline T.K.M.
Criou o Livro Lab há 12 anos e se dedicar a este projeto é uma das coisas que mais ama fazer, além de estar em contato com os mais variados tipos de expressões artísticas. Tem paixão por cinema, viajar e conhecer outras culturas. Ah, e ama ler em francês!
12 comentários
Estou com muito vontade de ler! Mas, tem uns filmes de zumbi legais, poxa. Fica como dica o "Diário dos Mortos" o meu preferido do gênero, que acaba lidando mais com a situação do que com "zumbis assustadores".
ResponderExcluirBeijos! =D
Olha só, valeu pela dica! Ah, tenho esse desânimo com filmes de zumbis porque todos os que vi são praticamente iguais, sempre as mesmas coisas, sempre as mesmas cenas de susto e ação. E olha que nem acho verdadeiramente assustadores, viu. Beijos.
ExcluirAmo análises comportamentais e amo zumbis. Ao saber que há um livro que faz a fusão nesses dois temas, nada mais óbvio do que me interessar perdidamente (ainda mais quando a resenha feita é extremamente clara <3)
ResponderExcluirternatormenta.blogspot.com
Que bom que você curtiu a resenha! ^^ Mas sério, lê o livro sim porque vale a pena e faz refletir.
ExcluirSó li um livro do Martin Page até agora, mas foi o suficiente para me deixar com vontade de ler os demais. Ainda não tinha lido uma resenha desse novo livro e, pelo que pude notar, o estilo crítico inconfundível do autor é mantido, mesmo sob pseudônimo. Tá na lista. :)
ResponderExcluirbjo
Ah, Martin Page é demais, é um lindo, não?! Pois é, o tom crítico e pessimista continuam. Vale a pena ler!
ExcluirÓIA! Tava lendo esse livro na livraria, mas como saí de lá, não consegui chegar na metade. Mas tava gostando bastante!
ResponderExcluirAh, jura?? Esse aí vale a pena comprar, viu! Recomendadíssimo!! Agora que você falou de ler na livraria, lembro que uma vez li um livro inteiro na livraria (como visitante) em dois dias, foi uma biografia da Janis Joplin, não esqueço isso até hoje! Faz mais de dez anos, acho que hoje eu não teria tanta paciência, a menos que o livro fosse muito bom (ou se eu trabalhasse na livraria!).
ExcluirGosto de Zumbis na literatura, mas ao contrário desse os que li eram "sérios" fiquei curioso agora, ainda mais sendo de um autor que vc tanto admira.
ResponderExcluirAbs
Tipo.. não entendi hahah, com "sérios" você quis dizer "assustadores", algo mais na linha terror? Realmente esse não tem nada de terror, a meu ver, mas gostei muito de toda a reflexão que envolve o narrador. Recomendo sem pensar duas vezes!
ExcluirAdorei o livro, foi uma leitura muito prazerosa e reflexiva. O que estragou um pouco a leitura, pra mim, foi a sinopse contida no livro, que me fez ir com tanta ânsia, que me fez esperar muito mais das reflexões feita pelo personagem. Mas apesar disso, gostei bastante. Adorei o casal de zumbis que fizeram companhia à ele ^^ Beijo!
ResponderExcluirNossa, eu já achei que o livro foi bem mais que o que a sinopse conta! Gostei muito das reflexões - e do desespero - do protagonista. E concordo, é bem engraçado isso de ele ter "escolhido" um casal de zumbis para acompanhar rsrs. Bjs!
Excluir