Dom Casmurro [Machado de Assis] | Livro Lab
Últimos vídeos    |  Se inscreva no canal
Resenha: Meu Ano de Descanso e Relaxamento  Leituras de 2022  Resenha: Belo Mundo, Onde Você Está
Semana do Consumidor Amazon | Livros

Dom Casmurro [Machado de Assis]

Adultério 24 de abril de 2015 Aline T.K.M. 4 comentários


É difícil e, ao mesmo tempo, muito gostoso falar de Dom Casmurro. Especialmente por se tratar das minhas segundas impressões a respeito da obra – isso cheira a maior responsabilidade!

Bento Santiago – então apelidado Dom Casmurro – tenta na velhice “unir as duas pontas da vida”, evocando e analisando a juventude, marcada pela paixão por Capitu, pela ida ao seminário e pela grande amizade com Escobar. Casa-se com a amiga e amor de infância e, cada vez mais, é tomado pelo ciúme e pelo verme da dúvida: Capitu o teria enganado com Escobar, seu melhor amigo?

Certamente uma das questões mais intrigantes da literatura brasileira de todos os tempos, e que restará para sempre sem uma resposta definitiva. As possibilidades de interpretação e de conclusão são inúmeras – parecem multiplicar-se a cada vez que se relê a obra.

Tão intrigante quanto a dúvida é a figura de Capitu. Personagem feminina mais discutida, analisada e estudada da nossa literatura, Capitu tem descortinadas facetas mil ao longo do romance. Capitu é menina e moleca, é também sedutora e determinada, gosta de aparecer, é interesseira e dissimulada. Ora é vítima ora é carrasco; mesmo diante das acusações de Bentinho, Capitu parece não perder a linha, porém tampouco defende ferozmente sua integridade como esposa, o que faz pulular um sem-fim de dúvidas. Suas longas tranças e o vestido de chita amarrotado passeiam livremente no imaginário de gerações de leitores, mas são os seus olhos o verdadeiro tema de poesia e de inquietação. “Olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, pelas palavras de José Dias, agregado da família de Bentinho; “olhos de ressaca” é o que pensava o próprio Dom Casmurro...

Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. [...] Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.

E, no entanto, a grande genialidade nisso tudo é que Capitu só é o que é, essa menina-mulher quase mítica, devido ao que pintam os pensamentos de Bentinho. Velho solitário e habitado pelo rancor, Dom Casmurro nos constrói essa pessoa que, quem sabe, pode não ter sido sequer um décimo de como suas pinceladas a fizeram perante os olhos do leitor. Não haveria como ser diferente; as histórias não se fazem lendas por si mesmas, mas por tudo o que plantam as palavras e ideias alheias.

Tudo é bem introspectivo e psicológico em Dom Casmurro. Ao discorrer sobre as lembranças de toda uma vida, o narrador-personagem lida com sentimentos muito intrínsecos ao ser humano. O ciúme e a desconfiança que cegam – e que muito provavelmente lhe teriam influenciado o olhar perante situações das mais diversas –, a inveja e a falta de confiança em si mesmo, o afeto sincero por um amigo, o amor e o ódio que caminham lado a lado, a solidão amarga.

Escobar era o cara interessante, era tudo o que Bentinho queria e não conseguia ser. O amigo lhe despertou a inveja, mas também uma afeição incondicional. Apenas companheirismo?; ou tal sentimento esconderia desejos secretos por baixo dos panos um tanto sufocantes das convenções sociais da época? Outra questão fadada a ficar sem resposta, embora mexa com a imaginação e suscite mil hipóteses na mente de quem lê.

Bento Santiago, Bentinho, ou apenas Dom Casmurro, é o homem inseguro e, posteriormente, rabugento e solitário que narra suas lembranças em primeira pessoa. É o narrador não confiável por excelência, uma vez que as demais personagens não têm direito de voz, mas também por se deixar influenciar ao longo da vida por sentimentos que vão a extremos, sempre permeados por uma grossa e empoeirada camada de rancor. Vítima e dono da razão; possuidor de um olhar irremediavelmente deturpado; cego de amor; ou ainda, frustrado por um desejo romântico mal esclarecido e de impossível realização? Personagem fascinante, esse Bentinho...

Obra pertencente à fase realista de Machado de Assis, Dom Casmurro traz personagens mais humanos, principalmente em seus defeitos. A trama contempla um aprofundamento nas questões de cunho psicológico e o autor disseca seus personagens sem muita piedade. Na temática temos o adultério, o egoísmo, a desconfiança, o ciúme, o interesse, o fingimento, a inveja – que até hoje, e sempre, dialogam com o ser humano no interior dos leitores.

Ainda sobre a temática, pode-se evocar a tragédia shakespeariana Otelo, o Mouro de Veneza, referenciada pelo próprio Machado de Assis aqui nesse romance. As intrigas que envolvem Otelo, Desdêmona, Iago e Cássio são conduzidas basicamente a partir daqueles mesmos sentimentos de ciúme, inveja e da desconfiança da traição, fazendo com que a peça de William Shakespeare continue muito atual até os dias de hoje.

Escrito em 1899, está mais do que provado que Dom Casmurro é daquelas obras que atravessam décadas, séculos, gerações. Seja pelos temas abordados, pela profunda análise do ser humano, ou ainda pela quase feérica – ao mesmo tempo tão mundana – Capitu. Dom Casmurro é daqueles livros que nos acompanham a vida inteira, e não pensem que seja pela ânsia de encontrar resposta à famigerada pergunta não respondida: “Capitu traiu ou não traiu?”. Diria que é, sobretudo, por nos fazer fechar o livro com um punhado de outras tantas perguntas, ainda mais numerosas que aquelas que conhecíamos desde o início.

LEIA PORQUE...
Clássico incontornável da literatura brasileira. Análise do ser humano, piração psicológica, Capitu (“a” mulher da literatura brasileira). E ainda: Machado de Assis é objeto de amor e ódio de muitos leitores por aí. Quer mais motivos?

DA EXPERIÊNCIA...
Definitivamente, as segundas impressões foram muito mais ricas que as primeiras: mais apaixonada que nunca por esta obra, e com ainda mais perguntas pipocando na minha cabeça! Pretendo que, ao longo da vida, ainda volte aqui para trazer minhas terceiras e quartas impressões... Ainda, como comentei no vídeo Leituras de março!, estou amando adaptar Dom Casmurro no curso de teatro. Descobrindo e explorando ainda mais nuances dessa história!

FEZ PENSAR EM...
Otelo, o Mouro de Veneza, de William Shakespeare – ainda quero ler a peça completa.
Série Capitu, que foi ao ar na Globo, e que ainda preciso desesperadamente ver nos youtubes da vida. "Elephant Gun", do Beirut (que fez parte da trilha sonora da série):


E "Capitu", música interpretada por Zélia Duncan:


QUANTO VALE?

Título: Dom Casmurro
Autor(a): Machado de Assis
Editora: Martin Claret (há outras edições desta e de outras editoras)
Edição: 2012
Ano da obra: 1899
Páginas: 210
Onde comprar: Fnac | Saraiva | Submarino | Livraria Cultura | Amazon (livro físico) | Amazon (edição Kindle)
eBook grátis (domínio público): Saraiva

Aline T.K.M.
Criou o Livro Lab há 12 anos e se dedicar a este projeto é uma das coisas que mais ama fazer, além de estar em contato com os mais variados tipos de expressões artísticas. Tem paixão por cinema, viajar e conhecer outras culturas. Ah, e ama ler em francês!

 

Você também vai  

4 comentários

  1. Oi, Aline! :)

    É por isso que eu sou a favor das releituras. À medida que vamos amadurecendo, passamos a ter um novo olhar sobre determinados temas, principalmente quando os mesmos envolvem a complexidade do ser humano e todas as facetas que resultam disso.

    Eu lembro de ter lido "Dom Casmurro" há muitos anos, cá entre nós, não terminei. Não que não tenha gostado. Pelo contrário, foi um dos livros mais incríveis que já tive a chance de ler. Mas na época eu tinha outras leituras obrigatórias para a escola e tive que optar. Enfim, certamente preciso ler na íntegra. Eu gosto de muito de livros assim: que nos fazem refletir sobre as relações humanas e levantam questionamentos que ocasionalmente levam a mais de uma resposta. Esse estilo Realista é o meu preferido nos romances clássicos.

    Seu exemplar da obra é lindo, Aline!

    Bjs ;)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Concordo muito com você a respeito das releituras. Ainda, em algum momento da minha vida, pretendo reler O Primo Basílio, O Cortiço e Senhora. Como você, também gosto muito dos romances realistas brasileiros.
      Entendo isso que você falou sobre as leituras obrigatórias, comigo acontecia o mesmo e foram vários os livros que abandonei ou nem cheguei a ler por causa de outras obrigações que acabavam se acumulando. Mas também acho que será muito mais proveitoso ler esses livros agora na idade adulta, não penso que na época de colégio eu tivesse maturidade para captar todas as nuances dessas obras. Beijinhos!

      Excluir
  2. Dia desses estávamos discutindo na aula de literatura sobre a polêmica: Capitu traiu ou não o cara? E né, TODO MUNDO ACHA QUE SIM. Eu acho que não. Quer dizer, só porque ela se conteve no velório não quer dizer que ela estava querendo esconder um sentimento de paixão incandescente. Só quer dizer que a mulher do cara tava desesperada e ela pensou que "olha, alguém tem de manter a calma por aqui".

    Porém, o povo lá analisando a dona Capitu, até que num determinado momento eles dizem que EU SOU IGUAL A ELA. Porque, na mente do meu professor, Capitu é uma moça de olhos verdes, meio puxados e ~sedutores~. Aí virei a Capitu.

    Isso me deixou meio triste e lisonjeada ao mesmo tempo. Sentimentos conflitantes aqui, hein.

    Mas, de fato, Machado escreveu uma obra que dá o que falar até hoje e que pode ser tudo, menos entediante.

    Adorei seu blog! O conheci por conta do Rotaroots - é a primeira vez que venho aqui - e já estou seguindo, certamente passarei aqui mais vezes.

    Beijos! ;*

    http://miasodre.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Mia, fico bem feliz que tenha gostado do blog, seja sempre bem-vinda por aqui, viu! Então, cara, Dom Casmurro é uma obra genial porque, se você for pensar, dá para tirarmos conclusões que favoreçam tanto Bentinho como Capitu, só que nenhuma dessas conclusões será 100% confiável (dadas as condições do narrador).
      Comigo foi meio assim, eu realmente achava que Capitu tinha traído, mas isso porque para mim parecia mais interessante se ela o tivesse feito, sabe. Hoje, relendo o livro e trabalhando em cima dele no curso de teatro, exploramos (sem dar diretamente uma resposta) a visão deturpada e doentia do Bentinho, as escolhas que ele fez durante a vida e que resultaram em sua solidão, a frieza com relação à morte de Capitu e Ezequiel. Esse é um lado muito interessante porque, mesmo que Capitu tenha sido ou não adúltera, parece certo que algo não ia bem com Bentinho. Certamente ele mostra um pensamento obsessivo, e isso é algo que não dá para ser ignorado.
      Hahahaha pois é, agora você vai ter que conviver com esse apelido! Brincadeira! Mas você pode se defender dizendo que, no livro, Machado descreve Capitu como tendo olhos escuros (embora eu ache que no imaginário coletivo Capitu é sempre a moça de olhos verdes e amendoados) hahahah.
      Beijinhos!!!

      Excluir

Parceiros