Em forma de romance, a autobiografia do francês Patrick Modiano, Nobel de Literatura 2014, retrata uma infância repleta de lacunas, vivida nos arredores da Paris pós-Segunda Guerra.
Primeiro de uma trilogia composta por Flores da ruína e Primavera de cão (lançados em breve pela ed. Record), Remissão da pena apresenta o pequeno Patrick – ou Patoche, como é carinhosamente chamado – e seu irmãozinho, que vivem em um vilarejo próximo de Paris sob os cuidados de amigas de sua mãe.
É na rue du Docteur-Dordaine que tudo e nada acontece. O que conhecemos é o cotidiano de banalidades, um pouco da vida escolar e da rotina caseira do jovem protagonista. A espera é um sentimento à espreita em cada esquina; a mãe está sempre em turnê com o teatro, já o pai vive viajando a negócios – dos quais nada sabemos com detalhe nem certeza – e visita os garotos esporadicamente. Se voltarão de vez ou não, é enigma que ninguém sabe.
De fato, tudo o que se conhece sobre a vida e a casa em que as duas crianças vivem é o que permite entrever os olhos do garoto Patoche. Das quatro mulheres que habitam a casa, sabemos que a pequena Hélène foi uma amazona e acrobata de circo (afastada da carreira após um acidente); que Annie é jovem, doce e brincalhona, e vai todos os dias a Paris em seu Renault 4cv bege (e muitas vezes não dorme em casa); que Mathilde, mãe de Annie, é meio megera e se dirige a Patoche por “imbecil afortunado”; e que Branca de Neve, a moça que toma conta dos meninos, é silenciosa e dona de um coque preto severo e olhos claros “transparentes”.
A casa é movimentada e os garotos aprenderam a se acostumar com o intenso vaivém. É frequente a visita de amigos, que nos são apresentados como Jean D., Roger Vincent, Frede, Andrée K. Quem são e o que fazem realmente são informações que permanecem turvas, tal como o são na cabeça de Patoche.
Aos poucos, os espaços em branco dominam a trama, narrada em primeira pessoa pelo garoto. Patoche e seu irmãozinho não participam plenamente das coisas na casa; tudo o que sabem se resume a dados soltos captados em conversas alheias, que vão montando e interpretando de acordo com sua mente ainda pousada na inocência infantil. Portanto, o que fica é certa aura misteriosa que envolve a todos, em especial Annie – o que ela faz todos os dias, qual sua real relação com seus amigos? – e, claro, os pais dos meninos, cuja ausência chega a ser inquietante.
A vida de menino aparece intercalada por momentos já como um jovem adulto, estudante vivendo sozinho em Paris e dando início à carreira de escritor, e que acaba por reencontrar pessoas do passado vivido na rue du Docteur-Dordaine.
Com extrema simplicidade, Modiano tece uma vida infantil feita de fragmentos, apoiada na memória e marcada por ausências. A solidão escoa das entrelinhas, bem como o desamparo e um pedaço de infância desprovida de cor. Coloridos são apenas os carrinhos bate-bate, que certa vez maravilharam os irmãos e são tema das conversas antes de dormir. Coloridas também são as visitas do pai e as histórias que ele conta sobre um tal Marquês de Caussade, dono do castelo abandonado que fica nas proximidades da casa dos meninos; e também cheias de cor são as incursões noturnas ao dito castelo, planejadas por Patoche e o irmãozinho.
Remissão da pena não traz respostas – talvez frustre quem as espera. De atmosfera cinzenta e apática, o livro é o que é: memórias de um período em que tudo o que se faz é esperar. O que é desconhecido assim permanece. Nada de artifícios mirabolantes; para preencher o vazio – os vazios, pois passam a ser muitos –, apenas um quê poético e a bonita autenticidade com a qual nos brinda Modiano.
LEIA PORQUE...
De leitura rápida, o livro tem narrativa mais simples do que se espera. Além disso, o cara ganhou um Nobel de Literatura – o que já é motivo suficiente para querer conhecer os seus livros.DA EXPERIÊNCIA...
Fui surpreendida pela simplicidade e pela singeleza do livro; cheguei à conclusão de que fiz um excelente début na obra de Patrick Modiano.FEZ PENSAR EM...
Biografias para quem não curte biografia. Este livro tem tudo para entrar na lista!QUANTO VALE?
Título: Remissão da pena
Título original: Remise de peine
Autor(a): Patrick Modiano
Tradução: Maria de Fátima Oliva do Coutto
Editora: Record
Edição: 2015
Ano da obra: 1988
Páginas: 128
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Aline T.K.M.
Criou o Livro Lab há 12 anos e se dedicar a este projeto é uma das coisas que mais ama fazer, além de estar em contato com os mais variados tipos de expressões artísticas. Tem paixão por cinema, viajar e conhecer outras culturas. Ah, e ama ler em francês!
4 comentários
Esse livro parece ser bem interessante! E nossa um autor com um Prêmio Nobel de Literatura, deve ser maravilhosa a escrita e a história. Adorei sua resenha!
ResponderExcluirBeijos,
http://www.girlbeinggeek.com.br/
Realmente é um livro que vale a pena ler. A escrita me surpreendeu, como disse, pela simplicidade. Enfim, recomendo! ^^ Beijos.
ExcluirLivro simples com grande reflexão.
ResponderExcluirAgora sim fiquei com vontade de ler.
Beijinhos, Helana ♥
In The Sky, Blog / Facebook In The Sky
Simples e muito bom, gostei muito do autor. A reflexão, na verdade, está mais nas entrelinhas mesmo, porque o que a gente encontra é mesmo as lembranças de uma criança que não entende completamente tudo o que acontece em seu entorno. Beijinhos!
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