Quote da quinzena: O Corpo Em Que Nasci
Guadalupe Nettel 5 de fevereiro de 2016 Aline T.K.M. Nenhum comentárioSemana de pouquíssimos posts, niver do blog logo aí... preciso de dias de 36 horas! (Aqui seria o lugar onde eu inseriria um emoticon perturbado, mas a canseira falou mais alto e... bom, vocês já sabem. Mas imaginem o emoticon, anyway.)
Mudanças, descobertas, autoconhecimento; O Corpo Em Que Nasci nos põe a acompanhar a vida de uma garota nem tão comum. Nascida com uma mancha branca na córnea que prejudicava sua visão e a deixava estrábica, a protagonista desta autoficção bem nos moldes de um romance de formação tem uma trajetória repleta de descobertas – ela muda de país, transita entre diferentes grupos, culturas e classes sociais. Sua situação familiar também é conturbada e ela, uma outsider por excelência, passa pela infância e adolescência percorrendo um árduo caminho rumo à autoaceitação.
Uma das coisas legais é que O Corpo Em Que Nasci é recheado de referências – muitas delas literárias – e é o tipo de leitura que eu classificaria como mais que obrigatória em algum momento da vida. Não importa se hoje, amanhã ou daqui a 10 anos, você PRECISA dedicar alguns dias da sua vida a esse livro.
Ah, o livro é da coleção Otra Língua – vale a pena conhecer, garanto! Mas antes, leiam os quotes de O Corpo Em Que Nasci e dividam comigo se ficaram bem curiosos para ler o livro!
Nessa época eu tinha a necessidade constante de me defender do entorno. Por exemplo, em vez de brincar com os outros meninos na praça, passava as tardes nos varais do terraço onde quase ninguém subia. Também preferia acessar minha casa, situada no quinto andar, pela escada do fundo e não pelos elevadores onde alguém poderia ficar horas preso com algum vizinho. Nesse sentido – muito mais que no aspecto físico – me assemelhava efetivamente às baratas que geralmente caminham pelas margens das casas e pelos dutos subterrâneos dos prédios. Era como se em algum momento eu tivesse decidido construir uma geografia alternativa, um território secreto dentro da unidade por onde passearia sem ser vista.
A liberdade sexual acabou por prejudicar minha família quando meus pais adotaram uma prática muito na moda durante os anos setenta: o então famoso “casamento aberto”. “Abrir o casamento” consistia basicamente na abolição da exclusividade – uma regra a meu ver fundamental para a preservação do matrimônio. A partir de um acordo comum, de que, insisto, nem meu irmão nem eu fomos informados, cada um dos meus pais adquiriu o direito de ir copular com quem tivesse vontade ou, como se diz habitualmente, “de fazer do seu cu um vaso”. [...] Eles justificavam isso diante de outros adultos argumentando que a propriedade privada era escandalosa e, embora não fosse possível erradicá-la de modo geral, ao menos poderiam contribuir colocando seus corpos ao alcance de outras almas necessitadas de afeto. [...] O importante, segundo eles, era manter a lealdade com o parceiro e fazê-lo participar, através de um relato pormenorizado, de cada um de seus encontros extramatrimoniais. Digam o que quiserem, estou certa de que este regime acabou por instaurar a discórdia entre eles.
Em vez de mostrar um comportamento mais submisso, optei pela resistência. Minha divisa – uma divisa idiota que adotei sem me dar conta e que mantive por quase toda a vida – consistia em evitar a todo custo que conseguissem me fazer chorar. [...] Apesar disso, como necessitava daquilo naquele momento!
Outro dos hábitos da avó consistia em anotar em um caderninho pautado e de capa dura cada evento diário, por mínimo que fosse, e também cada objeto ou alimento que comprava, para ela ou para a casa, sem omitir o peso ou a quantidade. Segundo me explicou ela mesma, tinha feito assim desde o primeiro dia de sua vida de casada, em 1935, para que meu avô não pudesse acusá-la nunca de gastar dinheiro. E continuava fazendo isso agora, onze anos depois da morte de seu esposo, por inércia ou por motivos que ninguém tinha conseguido decifrar. Com ela aprendi que o obsessivo não é forçosamente alguém com as unhas lindas e um penteado impecável, cuja casa se assemelha a uma vitrine, mas sim um ser tenso e quase sempre temeroso de que o caos tome por completo o controle de sua vida e da de seus entes queridos.
Era efetivamente o retrato da nossa árvore, se é que as árvores pertencem a alguém. Sobre as pedras vulcânicas, as silhuetas de algumas crianças sentadas de frente ou de costas, cujos rostos não se podiam ver claramente; crianças meditabundas que não brincavam nem sozinhas nem entre elas. Crianças como ela e como eu. A pintura me emocionou até as lágrimas. De golpe revivi a sensação de desamparo constante daqueles anos mas, do mesmo modo como nesse tempo em que o choro em frente aos demais era a última coisa que eu podia me permitir, me contive. Os comportamentos adquiridos durante a infância nos acompanham sempre, e mesmo que tenhamos conseguido, à força de uma grande vontade, mantê-los cercados, encolhidos em um lugar tenebroso da memória, quando menos esperamos nos saltam na cara como gatos enfurecidos.
Devo dizer que durante o primeiro ano os doces franceses me pareciam um pouco sem graça. Nenhum era picante, tinha cores fluorescentes ou aspecto radioativo e isso diminuiu em boa medida minha paixão por eles. Seus nomes acentuavam a diferença com os de meu país. Em vez de Pulparindo ou Burbuzest, lá se chamavam como as frutas e os animais: oursons, mini-bananes, fraises tagada, se é que não se distinguiam simplesmente pela substância genérica de que eram feitos. Em poucas palavras, careciam de mistério e, sobretudo, do caráter escatológico que enchia de nojo a expressão dos adultos e que aumentava sua atração. Com o passar do tempo, fui começando a gostar dessas guloseimas bem-comportadas e sem ambiguidades.
Não sei o que você acha, doutora Sazlavski, mas, para mim, o supostamente maravilhoso que tem a infância, segundo muita gente, são esses enganos que a memória nos leva. Por mais diferenças que existam entre uma vida e outra, estou convencida, doutora Sazlavski, de que nenhuma infância pode ser de todo prazerosa. As crianças vivem em um mundo onde a grande maioria de suas circunstâncias lhes são impostas. Outros decidem por eles: as pessoas com quem tratar, o lugar onde viver, a escola onde estudar, inclusive o que devem comer todo dia. O fato de que meu pai estivesse preso era parte da mesma coisa. De nada servia chorar ou estar em desacordo.
A dor permanece na nossa consciência como uma borbulha de ar cujo interior está intacto, esperando que se lhe invoque ou, no melhor dos casos, se lhe permita sair.
Blaise era filho de um desenhista de quadrinhos muito conhecido na França radicado em Paris havia muitos anos. Ele e sua mãe moravam também no Jas de Bouffan, mas em um bairro muito mais limpo e mais bonito que o nosso. Ele gostava de ler romances gráficos e estava muito a par das novidades e dos clássicos desse gênero. A literatura também o interessava, ainda que não no mesmo nível. De vez em quando nos aconselhávamos alguma leitura mutuamente, mas sempre pensando nos gostos do outro. Eu lhe recomendei por exemplo Toda a vida pela frente, de Émile Ajar, e O retrato de Dorian Gray, mas nunca lhe teria emprestado As filhas do dr. March pois sabia perfeitamente que esse livro o teria deixado enjoado até a náusea. Ele me recomendou Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley e aquele de Barjavel, mas nunca me sugeriu que lesse O hobbit, seu livro de cabeceira.
O silêncio, como o sal, é de uma leveza apenas aparente: na realidade, se alguém deixa que o tempo o umedeça, começa a pesar como uma espécie de bigorna.
Nessa época, li com verdadeira devoção os livros do movimento beatnik. Mais que William Burroughs ou Charles Bukowski, me identificava com os romances de Kerouac e a poesia de Allen Ginsberg, cuja biografia me impressionou muitíssimo. Me sentia particularmente inspirada por umas linhas que escreveu justo antes de decidir deixar seu trabalho de publicitário e enfrentar sua paixão por Peter Orlovsky. [...] Como ele, eu também sonhava em me aceitar a mim mesma, mesmo que nessa época ainda não soubesse com exatidão de que closet me cabia sair.
Trechos retirados do livro O Corpo Em Que Nasci, de Guadalupe Nettel.
Aline T.K.M.
Criou o Livro Lab há 12 anos e se dedicar a este projeto é uma das coisas que mais ama fazer, além de estar em contato com os mais variados tipos de expressões artísticas. Tem paixão por cinema, viajar e conhecer outras culturas. Ah, e ama ler em francês!
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